Das Raízes Computacionais da IA: Hilbert, Gödel e Turing Link para o cabeçalho
O sonho da formalização total: Hilbert e o programa da matemática Link para o cabeçalho
No início do século XX, a matemática enfrentava crises de fundamentação devido a paradoxos e inconsistências descobertos em teorias básicas (como o paradoxo de Russell na teoria dos conjuntos). Em resposta, o matemático alemão David Hilbert propôs um ambicioso programa para formalizar toda a matemática de forma axiomática e rigorosa. Apresentado por volta de 1921, o Programa de Hilbert tinha objetivos claros e audaciosos:
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Formalização completa: expressar todos os enunciados e provas matemáticas em uma linguagem formal simbólica, seguindo regras estritas de inferência lógica. A ideia era eliminar ambiguidades da linguagem natural, permitindo verificar mecanicamente cada passo de uma prova.
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Completude: assegurar que todo enunciado matemático verdadeiro fosse demonstrável a partir dos axiomas escolhidos. Um sistema formal completo não deixaria qualquer verdade matemática fora do alcance de uma prova dentro do sistema.
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Consistência: garantir que nenhum conjunto de axiomas adotado permitisse derivar proposições contraditórias. Hilbert insistia que os axiomas fundamentais da matemática deveriam ser provados consistentes usando apenas métodos finitários (sem recorrer a infinitos ou argumentos não construtivos), de modo a oferecer bases “seguras” para toda a matemática.
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Conservatividade: os axiomas não deveriam permitir provar resultados “novos” sobre objetos concretos que não pudessem ser obtidos também sem eles. Em outras palavras, teorias que introduzem objetos ideais (como conjuntos infinitos) não deveriam conflitar com resultados obtidos apenas com objetos finitos – a matemática “ideal” não deve comprometer verdades da matemática “real”.
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Decidibilidade: a existência de um método efetivo (algoritmo) para decidir, para cada enunciado formal bem-formulado, se ele é derivável (demonstrável) ou não a partir dos axiomas. Isso significa que, dado qualquer enunciado matemático expresso na linguagem do sistema, deveria haver um procedimento mecânico que determinasse se ele é demonstrável ou não dentro do sistema formal.
Em suma, Hilbert sonhava que a matemática inteira pudesse ser reduzida a um sistema formal axiomatizado de forma efetiva (idealmente com um conjunto finito de axiomas) e completo, no qual toda proposição verdadeira pudesse ser provada e nenhuma contradição jamais ocorresse. Cumpridos esses requisitos, imaginaram Hilbert e seus colaboradores, a atividade matemática estaria absolutamente fundamentada: qualquer questão de demonstrabilidade dentro do sistema teria um procedimento sistemático (embora talvez trabalhosa) e poderia, em princípio, ser resolvida de forma automática seguindo regras lógicas. Hilbert chegou a afirmar que “Wir müssen wissen – wir werden wissen” (“devemos saber – nós saberemos”), uma frase frequentemente citada como símbolo do otimismo do período quanto a uma formalização completa e a métodos mecânicos de prova.
Esse programa não era uma abstração desconectada: ele respondia a desafios concretos. No fim do século XIX, matemáticos como Gottlob Frege, Bertrand Russell e Georg Cantor haviam tentado fundamentar rigorosamente a aritmética e a teoria de conjuntos, mas encontraram paradoxos (como o paradoxo de Russell em 1901). Hilbert buscou então restaurar a confiança na matemática, propondo um caminho de formalismo estrito em vez da intuição ou do construtivismo preconizado por outros (notadamente L. E. J. Brouwer e os intuicionistas, com quem Hilbert travou acalorados debates). O programa hilbertiano representava a posição formalista: acreditava-se que com axiomas bem escolhidos e regras formais, seria possível evitar paradoxos e responder questões fundamentais como a consistência da matemática.
Um dos problemas emblemáticos nesse contexto é o Entscheidungsproblem (problema da decisão) para a lógica e a matemática. Formulado claramente por Hilbert e Wilhelm Ackermann em 1928, o Entscheidungsproblem perguntava: existe um procedimento mecânico para decidir se uma fórmula (em particular, da lógica de predicados de primeira ordem) é logicamente válida — e, portanto, demonstrável em um cálculo completo — ou não? Esta era a expressão concreta da exigência de decidibilidade no Programa de Hilbert. Hilbert esperava que a resposta fosse sim – ou seja, que encontrássemos um algoritmo que, dada uma fórmula na linguagem relevante, pudesse determinar infalivelmente se ela é válida (logo, demonstrável) ou não.
Os limites da formalização: Gödel e seus teoremas da incompletude Link para o cabeçalho
O grandioso sonho de Hilbert sofreu um golpe devastador em 1931, quando o matemático austro-húngaro Kurt Gödel publicou seus famosos Teoremas da Incompletude. Gödel provou rigorosamente que a visão de Hilbert era inatingível nos termos propostospt.wikipedia.org . Em linguagem simples, os dois teoremas de Gödel estabeleceram:
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Primeiro Teorema da Incompletude: Em qualquer sistema formal consistente o suficiente para expressar a aritmética básica, existem proposições verdadeiras que não podem ser provadas dentro do próprio sistema. Ou seja, o sistema é incompleto – sempre haverá ao menos uma afirmação (em verdade, infinitas) que é formulável no sistema mas que não é demonstrável nele (e, em versões clássicas do argumento, também não é possível demonstrar sua negação)plato.stanford.edu . Gödel mostrou isto de forma construtiva, exibindo como exemplo uma sentença $G$ que essencialmente afirma “$G$ não é provável neste sistema”. Se o sistema fosse capaz de provar $G$, ele seria inconsistente; se o sistema não consegue provar $G$, então (assumindo consistência) $G$ não é provável no sistema; e, na interpretação padrão da aritmética, $G$ é verdadeira embora não seja demonstrável ali — confirmando a incompletude.
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Segundo Teorema da Incompletude: Nenhum sistema formal consistente capaz de expressar aritmética pode provar sua própria consistência internamente. Em outras palavras, não há como uma teoria suficientemente poderosa garantir, por meio de um teorema dentro dela mesma, que “nenhuma contradição será derivada aqui”plato.stanford.edu . A própria afirmação de consistência do sistema escapa da capacidade de prova do sistema se ele for de fato consistente.
Esses resultados abalaram profundamente os fundamentos da lógica e matemática. Concretamente, as consequências para o Programa de Hilbert foram destruidoras: a exigência de completude teve de ser abandonada, pois Gödel demonstrou que mesmo teorias muito básicas da matemática não podem ser simultaneamente completas e consistentes. Sempre que um sistema formal for potente o bastante (por exemplo, contendo a aritmética dos números naturais) e for axiomatizado de forma efetiva, não dá para ter consistência e completude ao mesmo tempo. Haverá verdades que escapam ao sistema – proposições indecidíveis dentro dele – a menos que o tornemos inconsistente (e um sistema inconsistente “prova” tudo, tornando-se trivialmente completo e, portanto, inútil).
Além disso, a esperança de provar a consistência da matemática inteira de forma finitária também se esvaiu. O segundo teorema de incompletude mostrou que mesmo a aritmética de Peano (um conjunto de axiomas relativamente básico, porém expressivo) não pode ter sua consistência comprovada dentro dela mesma. E se uma teoria simples como a aritmética não pode se certificar internamente de que é consistente, tampouco uma teoria mais complexa (análise real, teoria dos conjuntos etc.) poderia ter sua consistência reduzida a ela – contrariando o encadeamento imaginado por Hilbert, onde teorias mais fortes teriam sua consistência garantida por teorias mais fracas. Em resumo, não existe um “fundamento último” finitário que garanta a isenção de contradições em toda a matemática, pelo menos não nos moldes estritos desejados por Hilbert.
O próprio Hilbert já estava idoso em 1931 (tinha 69 anos) e a notícia dos teoremas de Gödel foi, segundo alguns relatos, recebida com consternação pela comunidade formalista. Embora Hilbert não tenha renunciado explicitamente ao seu credo (ele faleceu em 1943), tornou-se claro para os matemáticos e lógicos que o sonho de uma formalização total e algoritmo decisório universal para a matemática não poderia se realizar. A famosa frase “ignoramus et ignorabimus” (“não sabemos e não saberemos”), que Hilbert abominava, reapareceu no vocabulário: haveria de fato afirmações matemáticas verdadeiras, mas que nunca poderíamos provar dentro de um dado sistema de axiomas – a menos que alargássemos o sistema (mas então ainda surgiriam novas verdades independentes, e assim por diante).
É importante notar, entretanto, que Gödel não destruiu a busca por fundamentos seguros de forma absoluta, mas redefiniu seus limites. Após 1931, o Programa de Hilbert adaptou-se: matemáticos como John von Neumann, Stephen Kleene, Gerhard Gentzen e outros continuaram investigando o que ainda era possível fazer. Por exemplo, Gödel ele próprio havia provado em 1930 o Teorema da Completude da Lógica de Primeira Ordem, mostrando que a lógica de predicados de primeira ordem é completa (toda fórmula válida é derivável)ar5iv.org . Gentzen, em 1936, encontrou uma prova da consistência da aritmética de Peano usando métodos transfinitos (sequência ordinal $\varepsilon_0$), trabalho que, apesar de não ser totalmente finitário nos termos de Hilbert, abriu caminho à teoria da prova moderna. Em suma, o legado de Hilbert se transformou ao invés de desaparecer: abandonou-se a ambição de um único sistema formal totalmente completo, mas surgiram novos campos (lógica matemática, teoria da computabilidade, metamatemática) que continuaram o espírito de investigar formalmente os limites e possibilidades da matemática.
Para a nascente área de computação e, no futuro próximo, de inteligência artificial, os resultados de Gödel tiveram implicações filosóficas importantes. Eles mostraram, por exemplo, que mesmo um “cérebro mecânico” perfeito, seguindo regras lógicas fixas, encontraria problemas insolúveis dentro de qualquer conjunto fixo de premissas. Isso motivou questões sobre a natureza da mente humana versus máquinas – alguns argumentando (mais tarde, Lucas, Penrose) que a mente escaparia dessas limitações godelianas, embora a maioria dos cientistas computacionais interprete os teoremas de Gödel apenas como restrições formais, não indicando nenhuma “mística” além do algoritmo. De todo modo, a incompletude estabeleceu uma fronteira teórica que qualquer sistema lógico-formal – seja um programa de computador ou uma inteligência artificial baseada em lógica – não pode ultrapassar internamente.
Computabilidade e máquinas abstratas: Church, Turing e companhia Link para o cabeçalho
Paralelamente às discussões sobre lógica e fundamentos da matemática, desenvolveu-se nos anos 1930 outra linha de pesquisa crucial: a investigação do conceito de computação e de algoritmo. Até então, palavras como “algoritmo” ou “procedimento efetivo” eram usadas informalmente para se referir a métodos passo a passo de cálculo que um ser humano ou máquina simples poderia executar. Mas o que significa exatamente algo ser “computável”? Essa pergunta ganhou urgência especialmente após o trabalho de Gödel – por exemplo, o próprio enunciado do primeiro teorema da incompletude pressupõe a noção de que o conjunto de teoremas prováveis de um sistema formal é “efetivamente enumerável” (computável) e que certas propriedades lógico-sintáticas são decidíveis. Era preciso formalizar o conceito de procedimento efetivo de uma vez por todas.
A resposta veio quase simultaneamente de duas frentes em 1936, graças a Alonzo Church e Alan Turing. Trabalhando independentemente, ambos propuseram modelos formais para capturar o que é uma função “efetivamente calculável” ou um algoritmo executável passo a passo:
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Alonzo Church, um lógico americano, introduziu uma formalização baseada em lógica e teoria de funções, conhecida como $\lambda$-cálculo (cálculo lambda). No $\lambda$-cálculo, funções são expressas através de abstrações algébricas simples de substituição de símbolos. Church definiu o conceito de função $\lambda$-definível e mostrou que ele coincidia com o conceito de função recursiva geral (investigado por Gödel e por Herbrand anteriormente). Em uma série de artigos, culminando em “An Unsolvable Problem of Elementary Number Theory” (1936), Church demonstrou que existe pelo menos um problema indecidível: ele provou que nenhum método efetivo consegue determinar, em geral, se uma fórmula qualquer do cálculo lambda pode ser reduzida a uma forma normal (essencialmente, se uma certa equação funcional é válida)plato.stanford.edu plato.stanford.edu . Esse resultado técnico, quando traduzido para a aritmética, implicava a impossibilidade de um algoritmo para o Entscheidungsproblem de Hilbert – a decisão automática de validade (ou derivabilidade) em sistemas lógicos de primeira ordemplato.stanford.edu plato.stanford.edu . Em outro artigo de 1936, Church abordou diretamente a lógica de primeira ordem e mostrou que determinar a validade de fórmulas em lógica de predicados é indecidível (hoje conhecido como Teorema de Church). Assim, meses antes do trabalho de Turing ser divulgado, Church já havia concluído que o sonho de um método mecânico universal para decidir validade/provabilidade (nos moldes pretendidos) era inviável.
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Alan Turing, matemático britânico, apresentou uma abordagem diferente e de enorme impacto: ele abstraiu o processo de cálculo realizado por humanos de forma mecânica e propôs um modelo idealizado de máquina, a que chamamos hoje de Máquina de Turing. Em seu artigo “On Computable Numbers, with an Application to the Entscheidungsproblem” (1936), Turing descreveu uma máquina hipotética extremamente simples, composta de uma fita infinita dividida em células (como quadrados de papel), um cabeçote leitor/escritor que pode mover-se pela fita e ler ou escrever símbolos (por exemplo, ‘0’ e ‘1’), e um conjunto finito de estados internos que seguem regras de transição predeterminadascs.virginia.edu cs.virginia.edu . Essa máquina é capaz de executar qualquer cálculo passo a passo, imitando um ser humano executando instruções bem definidas. A genialidade de Turing foi mostrar que tal modelo, apesar de simples, é equivalente a qualquer formalização possível de algoritmo – e mais: ele construiu um argumento convincente de que se algo não puder ser computado por uma máquina de Turing, então esse algo não é computável por nenhum processo mecânico concebível (essa ideia viria a ser formalizada como a Tese de Church-Turing, discutida adiante).
Turing então aplicou seu modelo para responder ao Entscheidungsproblem. Ele formulou um problema específico conhecido como problema da parada: dado uma descrição de uma máquina de Turing e uma entrada, determinar se a máquina eventualmente terminará o processamento (parará) ou se entrará em laço infinito. Turing provou que não existe nenhuma máquina de Turing capaz de resolver corretamente o problema da parada para todas as outras máquinas (é uma redução ao absurdo: supondo tal “máquina decisora universal”, ele a utilizou para construir uma máquina que leva a uma contradição sobre sua própria parada). A insolubilidade do problema da parada implicou imediatamente que não há um algoritmo geral que, para todo enunciado formal, decida se ele é demonstrável (ou, no caso do Entscheidungsproblem, se é logicamente válido), pois, caso contrário, seria possível decidir se uma dada máquina (codificada como fórmula lógica) irá parar ou não – basta interpretar a máquina e sua entrada como uma fórmula cuja demonstrabilidade equivalha à máquina parar. Assim, Turing chegou à mesma conclusão de Church: um algoritmo universal para decidir validade/provabilidade (no sentido pretendido) não existe.
Os trabalhos de Church e Turing, juntamente com contribuições de outros como Emil Post e Stephen Kleene, marcaram o nascimento da Teoria da Computabilidade. Mais do que mostrar problemas indecidíveis, eles nos legaram definições robustas do que significa ser computável. Em particular, consolidou-se a já mencionada Tese de Church-Turing:
Qualquer método efetivo de cálculo (isto é, qualquer procedimento algorítmico executável por etapas) pode ser simulado por uma máquina de Turing. Em outras palavras, a noção informal de “algoritmo” ou de “função efetivamente calculável” coincide com a noção formal de “função computável por uma máquina de Turing” ou equivalentemente “função $\lambda$-definível” de Church.
A tese de Church-Turing não é um teorema matemático demonstrável (pois envolve a noção intuitiva de “procedimento efetivo”), mas é amplamente aceita devido à abundante evidência: todas as tentativas independentes de formalizar computação resultaram em modelos equivalentes entre si. Além de máquinas de Turing e cálculo lambda, têm o mesmo poder computacional as funções recursivas de Gödel/Kleene, as máquinas de Post, os autômatos de registro, etc. Essa convergência fortíssima sugere que não é possível encontrar nenhum procedimento de cálculo que escape ao arcabouço dessas máquinas abstratas. Assim, “ser computável” passou a significar “ser computável por uma máquina de Turing”, e qualquer função ou problema que fuja dessa definição é considerado não computável (ou seja, nenhum algoritmo finito pode resolvê-lo em geral).
Para a ciência da computação nascente, essas ideias estabeleceram os limites do que o hardware e o software podem fazer. E para o futuro da inteligência artificial, a tese de Church-Turing desenha um contorno: se assumirmos que processos mentais podem ser reduzidos a algoritmos, então eles também não poderiam ultrapassar o poder de uma Máquina de Turing. Até hoje, é comum tratar a tese de Church–Turing (como uma tese sobre o que é computável) como a interpretação dominante: nenhum computador real construído (incluindo os computadores quânticos) parece ultrapassar o domínio das máquinas de Turing em termos de quais funções podem computar, embora possam diferir muito em eficiência. Em resumo, nos anos 1930 definiram-se tanto as possibilidades (tudo que é computável está ao alcance de uma Máquina de Turing universal) quanto as impossibilidades (existem problemas, como o da parada, que nenhuma máquina de Turing – e portanto nenhum algoritmo – consegue resolver) da computação.
A invenção do computador eletrônico e a cibernética Link para o cabeçalho
Até meados dos anos 1940, toda a discussão sobre computabilidade e máquinas de Turing era predominantemente teórica – lidava-se com máquinas imaginárias ou dispositivos mecânicos simples (como calculadoras e analisadores diferenciais). Isso mudou dramaticamente durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando avanços em eletrônica impulsionaram a criação dos primeiros computadores digitais eletrônicos de uso geral. Essa revolução tecnológica forneceu as ferramentas concretas para que a noção de “máquinas pensantes” pudesse enfim ser explorada na prática.
Dois fatores impulsionaram o desenvolvimento de computadores na década de 1940: a demanda bélica (cálculos balísticos, criptografia, projetos de engenharia) e o progresso nos componentes eletrônicos (válvulas termiônicas, relés eletromecânicos, etc.). Alguns marcos dessa era pioneira:
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Criptografia e guerra: No Reino Unido, matemáticos e engenheiros trabalhando em Bletchley Park – entre eles Alan Turing – desenvolveram dispositivos para decifrar códigos alemães. Em 1940, Turing concebeu a máquina Bombe (eletromecânica) para quebrar a cifra da máquina Enigma. Em seguida, a necessidade de decifrar mensagens teletipo cifradas pelo sofisticado sistema Lorenz Tunny levou à construção do Colossus, um dos primeiros computadores eletrônicos digitais de grande porte, em 1943-44britannica.com . O Colossus usava cerca de 1.600 válvulas (e as versões posteriores chegaram a ~2.400) e podia ler fitas perfuradas em alta velocidade, realizando operações lógicas para encontrar chaves de cifra. Embora não fosse um computador de propósito geral (era programável apenas para tarefas de criptoanálise específicas), o Colossus demonstrou o enorme potencial de dispositivos eletrônicos digitais – sua velocidade superava em ordens de grandeza a de qualquer calculadora mecânica anterior. Por ser um projeto militar secreto, o Colossus permaneceu classificado por décadas, mas em retrospecto é reconhecido como um precursor importante na história da computação digital.
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Cálculos científicos e balísticos: Nos EUA, esforços paralelos levaram ao desenvolvimento do ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer) na Escola Moore da Universidade da Pensilvânia. Financiado pelo exército americano para calcular trajetórias de artilharia, o ENIAC foi colocado em operação no fim de 1945 e apresentado ao público em fevereiro de 1946 e anunciava a era do computador eletrônico digital de propósito geral. Com quase 18 mil válvulas e pesando 30 toneladas, o ENIAC podia ser reprogramado para diferentes cálculos (embora a reprogramação envolvesse reconectar manualmente cabos e chaves). Ele atingia velocidades impressionantes para a época, realizando milhares de operações por segundo, e provou sua utilidade em problemas variados (de tabelas balísticas a aplicações militares e científicas posteriores de grande porte). O ENIAC mostrou que computadores universais eram viáveis fisicamente e podiam automatizar cálculos complexos que antes consumiam centenas de horas de trabalho humano.
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Arquitetura de von Neumann: Uma limitação do ENIAC era a dificuldade de reprogramação; para superar isso, logo após a guerra concebeu-se a ideia de armazenar as instruções de um programa na própria memória do computador, ao lado dos dados. Essa ideia, descrita inicialmente pelo matemático John von Neumann no documento intitulado “First Draft of a Report on the EDVAC” (1945), introduziu o conceito de armazenamento de programa e organizou o computador em unidades lógicas (CPU, memória, dispositivos de entrada/saída) – configuração que ficou conhecida como arquitetura de von Neumann. No projeto EDVAC e em máquinas subsequentes (como o EDSAC em 1949 na Inglaterra, e o IAS Machine de von Neumann em 1951), as instruções eram codificadas em forma binária na memória, permitindo que o computador as lesse e executasse sequencialmente. Isso transformou a flexibilidade dos computadores: um computador eletrônico passou a ser uma máquina universal de calcular, capaz de, em tese, executar qualquer algoritmo – exatamente como a Máquina de Turing Universal teorizada por Turing em 1936. A equivalência entre o conceito teórico e a máquina real tornava-se palpável: a cada novo programa carregado, o mesmo hardware poderia assumir funções inteiramente novas (resolver equações, jogar xadrez, processar texto, etc.). Essa versatilidade é o que tornou os computadores tão importantes nas décadas seguintes e é um pré-requisito para a ideia de inteligência artificial – pois para “pensar”, uma máquina precisa ser reprogramável com grande liberdade.
Enquanto os computadores ganhavam vida nos laboratórios, outra corrente intelectual emergia nos anos pós-guerra: a Cibernética. Fundada principalmente pelo matemático americano Norbert Wiener, a cibernética preocupava-se com os mecanismos de controle, realimentação (feedback) e comunicação em sistemas tanto vivos quanto artificiais. Durante a guerra, Wiener trabalhou em sistemas de mira antiaérea que previam a trajetória de aviões inimigos. Ele percebeu que para um canhão “seguir” um avião, era necessário continuamente comparar a posição atual com a esperada e ajustar o tiro – um loop de feedback entre medição e ação corretiva. Generalizando esse insight, Wiener concebeu que muitos processos (desde o controle de temperatura por um termostato até a coordenação motora em animais) seguiam o mesmo princípio básico: informação sobre o desempenho atual é usada para ajustar ações futuras, formando um circuito de retroalimentaçãomaxplanckneuroscience.org . Quando um sistema incorporava feedback, ele podia se manter estável ou perseguir um objetivo automaticamente, quase como se tivesse “propósito”.
Em 1948, Wiener publicou o influente livro “Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and the Machine”, que deu nome a essa nova disciplina. A cibernética cruzava os campos da engenharia, biologia, psicologia e computação, estudando desde servomecanismos até o cérebro humano sob a ótica da informação e do controle. Dois conceitos-chave eram:
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Feedback negativo: usado para manter um sistema próximo de uma meta ou estado desejado (ex: piloto automático corrigindo o curso de um avião, ou um míssil guiado ajustando seu trajeto continuamente).
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Feedback positivo: amplificando divergências, podendo levar a comportamentos explosivos ou auto-reforçadores (embora menos usado para controle, tem paralelos em crescimento populacional, reações em cadeia etc.).
Wiener argumentou que combinando sensores, atuadores e circuitos de feedback, máquinas poderiam exibir comportamentos adaptativos e finalísticos, lembrando ações inteligentes. Por exemplo, um termostato simples “percebe” a temperatura e age sobre a caldeira; robôs poderiam ser projetados para reagir a estímulos e manter-se dentro de certos parâmetros – ideias exemplificadas pelas “tartarugas” cibernéticas de W. Grey Walter (final dos anos 1940; aperfeiçoadas no início dos anos 1950), pequenos autômatos móveis que conseguiam seguir luz ou recarregar suas baterias, comportando-se de modo surpreendentemente semelhante a criaturas simples.
A cibernética teve um impacto direto no surgimento da IA. Primeiro, introduziu a noção de sistema automático capaz de auto-regulação, plantando a semente de que máquinas poderiam agir intencionalmente no mundo real, não apenas calcular dentro de caixas pretas. Segundo, inspirou modelos do cérebro: em 1943, Warren McCulloch (um neurofisiologista) e Walter Pitts (lógico) publicaram um trabalho combinando lógica e neurociência, mostrando que redes de neurônios artificiais simples poderiam, em princípio, computar quaisquer funções lógicas (eles modelaram neurônios como unidades binárias on/off). Esse trabalho é frequentemente citado como o primeiro passo na rede neural artificial, e McCulloch participou ativamente dos encontros de cibernética nos anos seguintes. A ideia de que inteligência pudesse emergir de redes de unidades simples interconectadas vinha ao encontro da perspectiva cibernética.
Wiener, por sua vez, chegou a especular sobre máquinas aprendizes e até reprodutoras. Em seu livro e escritos seguintes, ele ponderou que computadores e autômatos poderiam no futuro armazenar experiências passadas e melhorar seu desempenho, e até construir cópias de si mesmos em ambientes propíciosmaxplanckneuroscience.org maxplanckneuroscience.org . Ele alertou também para implicações sociais da automação e de possíveis “máquinas inteligentes”, prevendo deslocamento de empregos e a necessidade de reflexão ética – preocupações que se mostraram proféticas.
Dessa convergência – computadores eletrônicos programáveis de um lado, e teoria cibernética do outro – criou-se pela primeira vez um clima onde era legítimo perguntar seriamente: “podem as máquinas pensar?”. Alan Turing fez exatamente essa pergunta em um artigo seminal em 1950, propondo um critério operacional (o Teste de Turing) para determinar se uma máquina exibe inteligência comparável à humana. O próprio termo “Inteligência Artificial” seria cunhado poucos anos depois, em 1956, na famosa conferência de Dartmouth. Mas é evidente que as raízes lógicas e computacionais da IA residem nesse período de 1900–1950 que examinamos: Hilbert forneceu a motivação para formalizar o pensamento; Gödel mostrou os limites fundamentais de qualquer sistema formal; Church e Turing definiram o que é computação e até onde ela pode ir; e a guerra e a cibernética transformaram máquinas de calcular em agentes automáticos no mundo real, pavimentando o caminho para a ideia de máquinas inteligentes. As “máquinas pensantes” deixaram de pertencer apenas à ficção científica para se tornar uma possibilidade tecnológica e científica, a ser explorada pelas gerações seguintesmaxplanckneuroscience.org .
Referências:
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Wiener, N. (1948). Cybernetics: or Control and Communication in the Animal and the Machine. Paris: Hermann & Cie; Cambridge, MA: MIT Press. Disponível em: https://libraries.mit.edu/150books/2011/04/04/1948/ (acesso em 13 dez. 2025).
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Max Planck Institute (2024). From Cybernetics to AI: the pioneering work of Norbert Wiener. (Artigo online de divulgação científica). Link: https://maxplanckneuroscience.org/from-cybernetics-to-ai-the-pioneering-work-of-norbert-wiener/ (acessado em 2025-11-16).